04 março 2009

"GRANDE PENALIDADE"

"Vejo a bola, pousada na marca de penalty. E vejo a baliza imensa: sete metros e trinta e dois centímetros de um poste ao outro, dois metros e quarenta e quatro centímetros entre a barra e o solo, quase 18 metros quadrados por onde a bola pode entrar e beijar as redes, como gostam de dizer os comentadores. Vejo a bola, vejo a baliza. E vejo a multidão, milhares e milhares de pessoas à volta do campo, com bandeiras e buzinas, à espera do meu remate, do meu golo, do golpe certeiro que desempate esta final, que garanta para o nosso clube, para o nosso país, a taça que brilha sobre aquela mesa coberta de insígnias. Vejo a bola, vejo a baliza, vejo o público. E vejo o guarda-redes adversário, de braços abertos, sobre a linha branca. O árbitro apitou. Em que estará a pensar o guarda-redes, enquanto olha para mim, para os meus pés, para o meu rosto, tentanto adivinhar a direcção e a força do remate? Pensa no mesmo que eu penso. Na minúscula diferença que separa o falhanço da glória. Eu posso rematar ao poste ou à figura. Ele pode lançar-se para o lado errado ou deixar que a bola raspe nas luvas e entre. Basta uma hesitação, um piscar de olhos, para cair no inferno. Olho para o guarda-redes, o guarda-redes olha para mim. O estádio cala-se. Levanto a cabeça, corro para a bola, fecho os olhos no último segundo, remato. E só então me apercebo de que nada serve a minha fé e a minha angústia. Somos figurantes, eu e o guarda-redes (talvez também o árbitro e o público). Somos as vítimas de um jogo perverso. Porque a bola tem vontade própria. É ela que decide se entra ou não na baliza.”

José Mário Silva – Efeito Borboleta, Oficina do Livro

Grande livro de microcontos. Recomendo vivamente.

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